domingo, 4 de março de 2018

São Gabriel, de Azara aos dias atuais (1)

A existência de povoamento nos idos tempos, mesmo antes da fundação do povoado de Félix de Azara em 1800, nos contrafortes do Cerro do Batovi, já é matéria superada e pacífica. O insigne escritor gabrielense general Ptolomeu de Assis Brasil, no seu livro “A Batalha do Caiboaté”, situado no ano de 1756, escreveu:

“Antes de atingirem o pouso desse dia, uma légua antes do rio, encontraram quatro ranchos de palha, um dos quais servia de capela e tinha paredes de pau a pique revestidas de couro, pintado por dentro com uma tênue mão de cal, porta ao poente”.

Por antigos documentos pode-se verificar que a partir de 1789 começaram as doações, senão antes, nas sesmarias de campos e matos da região de São Gabriel, anotando-se os colonizadores abaixo relacionados:

Antônio Gomes Torres, Antônio da Costa, Ambrósio José de Freitas, Alexandre Elóy Portelly, Bernardino Henrique Samorim, Constantino José Pinto, Lucas Fernandes da Costa, Manoel Inácio Henriques, Alexandre Manoel da Cunha e Souza, José da Cunha e Souza, Domingos Rodrigues Nunes, João de Faria Rosa, Francisco Carneiro de Figueiredo Sarmento, João Nepomuceno de Carvalho Prates, Brígido Joaquim Thomásio de Sampaio, João Guilherme Jacques e José Martins de Oliveira.

Nessa mesma época obtiveram concessões mais os seguintes estancieiros: Francisco Antônio de Bittencourt, Francisco das Chagas Santos, Francisco Machado da Silveira, Isidoro Xavier Ramos, Inácio Veloso da Fontoura, José Maria Corrêa Vasques, João Ferreira de Oliveira, Joaquim Tomaz de Andrade, Pedro José Corrêa da Câmara, Teodoro Lopes de Carvalho, Timóteo Lemos do Amaral, Antônio Alves Trilha, Antônio da Silva Neves, Baltasar Pinto de Aguiar, Bento José Martins, Camila Martins de Menezes, Fortunato Francisco da Silva, Francisco Xavier César, José da Cruz Albernaz, Manoel Gomes de Camargo, Maria Inácia da Puresa, José Maria Gama Lobo D’Eça, João Alves de Faria, Clemente Ferreira Bica, João da Rocha e Souza, Manoel Martins Pinto, José Machado Fagundes de Bitencourt, João de Deus Menna Barreto e o padre João de Almeida Pereira.

Por esses antigos assentamentos, a região era conhecida antes da instalação de São Gabriel, o que os fatos comprovaram amplamente. As terras doadas ficavam situadas nos lugares denominados Sesmaria do Bocacahy, ou ainda por Sesmaria do Batoby, ou Batovy.

O sistema de sesmarias perdurou no Brasil até 17 de julho de 1822. A Resolução Nº 76, atribuída a José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), pôs fim a este regime de apropriação de terras.

O TRATADO DE SANTO ILDEFONSO

O histórico que se segue, foi baseado em matéria histórica do historiador, poeta, jornalista e escritor, Walter Spalding, publicada na “Revista do Globo”.

Em 1777 foi firmado o Tratado de Santo Ildefonso e na demarcação feita em 1784, em terras gabrielenses, colocados o 3º e o 4º marcos castelhanos, nas origens do rio Cacequi e no cerro de Caiboaté, respectivamente.

Nessa época começaram a se estabelecer na região os primeiros povoadores luso-brasileiros. Entre os rios Vacacaí, Cambaí, Cambaizinho e Divisa, foram concedidas pela primeira vez, três léguas de sesmarias, em 1788.

Com a paz de Santo Ildefonso se intensificou a concessão de sesmarias aos que se haviam destacado na guerra. E esta classe de militares, agora donos de terras, foi a origem da aristocracia pastoril gaúcha, consolidando o regime das estâncias como uma das bases econômicas da região.

Mas dando margem também a uma grande quantidade de abusos de poder, que tinham seu fundamento na realidade de um grupo que se experimentara a ferro e fogo, mas para quem o senso de justiça, lei e humanidade estava morto.

Os próprios administradores régios davam péssimo exemplo, enriquecendo à custa da província e acumulando vastas extensões de terras. Cada grande sesmeiro era como um poderoso senhor feudal que só atendia aos seus interesses e os impunha pela força.

Repetidas vezes as queixas chegaram à Coroa, mas sempre com pouco resultado. A vida na estância era precária em todos os sentidos.

Somente os senhores podiam ter algum luxo numa casa grande, que mais se parecia a uma fortificação, com paredes grossas e grades nas janelas.

Em torno dela se agrupavam a senzala e famílias livres, que vinham em busca de proteção e recebiam uma porção de terra em troca de um compromisso de fidelidade servil para com o proprietário, produzindo alimentos e bens manufaturados para seu sustento próprio, mas sobretudo para o patrão.

A habitação desses agregados era um sumário casebre de barro coberto de palha, despojado de todo conforto. Um relato de época, deixado por Felix Azara, descreve o ambiente:

As típicas propriedades rurais da região central do Rio Grande do Sul em meados do século XIX possuíam um barril para a água, uma guampa para o leite e um espeto para assar a carne.

A mobília não ia além de umas três peças. As mulheres andavam descalças, sujas e andrajosas. Seus filhos se criavam vendo somente rios, desertos, homens vagos correndo atrás das feras e touros, matando-se friamente como se degolassem uma vaca.

UM CENÁRIO DIFERENTE

Mas esse cenário nem sempre foi assim tão desumano. Muitas estâncias produziam uma variedade considerável de produtos agrícolas e de uma indústria primitiva, tornando a propriedade autossuficiente e as condições gerais um pouco melhores.

Havia momentos de entretenimento nos bolichos, pequenas casas de comércio, bebida e encontro social masculino de beira de estrada. E as festas religiosas na capela local congregavam toda a pequena comunidade e atraíam grupos de outras estâncias.

Nesses encontros começou a se formar o folclore do Rio Grande do Sul, nos contos de causos (relatos de façanhas e fatos extraordinários) em torno do fogo, nas carreiras de cavalos, na troca de experiências sobre a vida campeira, na absorção e transformação dos mitos indígenas locais.

O empregado da estância foi, assim, um dos formadores da figura prototípica do gaúcho, que na verdade foi "construída" pela intelectualidade local no século XX, mas que hoje é a inspiradora de parte importante da cultura do Estado e do seu senso de identidade.

Outra parte do caráter total dessa entidade abstrata, que diz respeito à insubmissão e liberdade foi emprestada do povo errante de homens sem lei, formado por índios evadidos das missões, contrabandistas, caçadores de couros, aventureiros, escravos e bandidos foragidos, que percorriam em predação os campos de gado livre.

Viviam em bandos por conta própria, comendo carne e bebendo mate e aguardente, vestidos de uma indumentária simples e adaptada à vida constante sobre um cavalo, enfrentando dias de intenso frio nos invernos, tendo de dormir, quase sempre, a céu aberto.

Eram sempre um perigo para os estancieiros, especialmente os mais pobres, e constantemente se envolviam em rusgas com os espanhóis na fronteira. Suas relações com os oficiais do reino eram ambíguas.

Por um lado competiam na presa do gado solto, mas também podiam ser contratados para fazerem o mesmo serviço para um senhor ou prestar tarefas militares junto a um destacamento oficial. Em 1803 seu número chegava a quatro mil, numa população total de 30 mil habitantes.

Até então o interesse dos colonizadores pelo gado se resumia ao couro, que era de grande importância na vida cotidiana da colônia. A carne era apenas para uso familiar, e todo o excedente era desprezado. Calcula-se que o rebanho livre tenha chegado a cerca de 48 milhões de reses e um milhão de cavalos.

Depois de 1780 o gado livre começou a rarear, mas então se abriu um novo e amplo mercado para a carne que era descartada, iniciando a cultura das charqueadas, cujo produto seguia para o Nordeste a fim de alimentar os escravos dos engenhos de açúcar.

Os índios, aldeados em São Miguel das Missões, possuíam uma estância nas margens do rio Vacacaí, onde, também se localizavam, em 1750, as reduções jesuíticas de São Luís, São João e São Lourenço, as duas últimas em direção ao rio Piquiri.

A HISTÓRIA DE SÃO GABRIEL TEVE INÍCIO

Foi nessa época, idos de 1750, quando os jesuítas espanhóis dominavam grande parte do Rio Grande do Sul que começou a história de São Gabriel.

Pelo tratado de Madri, assinado naquele ano, o que constituía o território do atual município passou a pertencer a Portugal, pois até então era da Espanha, servindo o rio Santa Maria de divisa. Mas as disputas internas entre castelhanos, portugueses e índios só permitiram a demarcação do território a partir de 1784.

Em 2 de novembro de 1800 o naturalista espanhol Félix de Azara fundou junto ao Cerro do Batovi, uma povoação com o nome de São Gabriel, supõe-se que em homenagem ao vice-rei do Prata, Gabriel de Avilez y del Fierro.

Batovi é um cerro situado na localidade de mesmo nome no interior do município de São Gabriel. De cima do cerro pode-se vislumbrar, perto e a longa distância, os municípios de Lavras do Sul, Santana do Livramento, Dom Pedrito, Rosário do Sul e São Sepé.

O nome "Batovi" tem origem na língua indígena guarani e significa seio de virgem. É o ponto mais alto do município, com uma altitude de 274 metros. Há também outro cerro com o mesmo nome, localizado no departamento de Tacuarembó, no Uruguai.

Manuel de Almeida Lobo d'Eça foi agraciado com o titulo de Barão de Batovi, pelo imperador Dom Pedro II, por seus feitos militares na região.

OS PRIMITIVOS HABITANTES

Os primitivos habitantes da área de São Gabriel foram os índios Minuanos e os Charruas, que tinham muitas semelhanças. Os Minuanos chegaram a ser um grande povo de índios cavalheiros, tão respeitados e temidos como os Charruas.

Em princípios do século XVIII, ocupavam grandes áreas do Sul, desde a província Uruguaia nos confins da lagoas Mangueira e Mirim, no extremo meridional do Rio Grande do Sul.

Esses famosos ginetes acabaram habitando as regiões compreendidas entre os atuais municípios de Uruguaiana, Quarai, Santana de Livramento, Alegrete, Rosário do Sul e São Gabriel.

Nesse último, eles tinham suas toldarias, junto ao cerro do Batovi e às margens do Rio Cacequi. Sua influencia na formação do gaúcho é incontestável. Deles, muitos hábitos e costumes são conservados na tradição campeira gaúcha.

Foram esses índios que mais se identificaram com os portugueses desde os primeiros contatos. Vítimas das pestes e das guerras de fronteira ficaram reduzidos a toldarias encontradas na Serra do Caverá, nos campos do Jarau, em torno do Batovi e onde está hoje o distrito de Azevedo Sodré, município de São Gabriel.

Em seu livro “São Gabriel na história”, o renomado historiador Aristóteles Vaz de Carvalho e Silva conta que o nome primitivo indígena da localidade hoje conhecida por Azevedo Sodré, era “Taba Queimada”, em virtude de uma luta entre os índios Guaianases e Charruas (que se aliaram aos Minuanos).

Os Charruas foram derrotados, os homens mortos e as mulheres levadas pelo inimigo, que botou fogo no lugar, que recebeu, por isso, a denominação de “Taba Queimada”.

Em 13 de março de 1787, uma terça-feira, o coronel José Saldanha encontrou-os nas cabeceiras do Cacequi. Descreveu-os: “No acampamento de 13 de março fomos visitados pela primeira vez pelos índios Minuanos.

Eles têm as ventas do nariz e as maças do rosto intumescidas, como os demais. São corpulentos e bem feitos; as mulheres são quase todas de meia estatura; as demais feições são iguais às do americano.

Seus cabelos são longos e eriçados. Cobrem-se pelas costas até os calcanhares, com os “caiapis” (capa) feito de couro descarnado e sovado. Usam-no com o carnal para fora, atados com um tento por cima do ombro, e rematado no pescoço.

Vestem-se com uma tanga ou chiripá de pano de algodão e não dispensavam as boleadeiras que traziam presas à cintura. Alguns deles trazem os cabelos e a cabeça atados com um pequeno e sujo lenço (vincha)”.

As moradas dos índios eram chamadas de toldos e, quando em grupamento, de toldaria. A mulher era muito dedicada ao marido. Ela juntava lenha, fazia fogo, preparava o mate e o churrasco e encilhava o cavalo quando tinha arreios, geralmente só usados por caciques.

Félix de Azara, descrevendo esses índios, disse: “A mulher minuana, como a charrua, cata piolhos e pulgas com afeição e gosto, prendendo-os na ponta da língua, para depois mastigá-los e comê-los com prazer”.

José Saldanha afirma que foram eles que inventaram as boleadeiras e o laço, “instrumentos comuns e necessários aos campeiros que estes campos vadeiam (...). Com esses, apanham no campo várias éguas, potros bravios e também cavalos mansos”.

Os Charruas aprenderam a domar os cavalos e com eles faziam correrias pelos pampas quase intermináveis. Acredita-se que a etnia Charrua não existe mais. Tendo entrado frequentemente em conflito com as populações coloniais, eles foram derrotados pelo exército uruguaio em 1831, com a eliminação da maior parte da população.

Quatro sobreviventes, incluindo o último chefe (Vaimacá Perú), chegaram a ser levados a Paris e exibidos como curiosidades exóticas. Eram uma mulher e três homens. Seus nomes eram Senaqué, Tacuavé, Vaimaca e Guyunusa.

Sabe-se que alguns percorreram a Europa em circos, em apresentação falaciosa, como antropófagos do novo continente. Vaimacá morreu pouco tempo depois.

Seus restos mortais foram incorporados ao acervo do Museu de História Natural de Paris. Em 1998, porem, foram repatriados para o Uruguai, onde estão depositados no Panteón Nacional, em Montevidéu.

Acho que os Charruas também habitaram minha terra natal, Dom Pedrito, pois quando criança lembro que se falava muito neles. Até conheci dois irmãos, de sobrenome Quadros, que eram chamados de Charruas. Porque, não sei.

Mas no Uruguai até a Seleção de futebol do país é chamada de Charrua, o que hoje tem o significado de garra, de enfrentamento ao adversário com muita dedicação.

Já os Guaianases podiam ser encontrados numa grande área desde São Paulo, até o Uruguai.

Os índios Guaranis, por sua vez, formam o maior povo em quantidade de indivíduos a viver no Brasil.

Vivem nos estados brasileiros do Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pará, Santa Catarina e Tocantins. Também há indígenas Guaranis vivendo na Argentina, Bolívia e no Paraguai.

Os Guaranis até hoje tem ligação intima com São Gabriel. Desde 2004, no mês de fevereiro, eles marcam presença na cidade para homenagear Sepé Tiaraju, símbolo da luta pela terra.

O grande guerreiro Guarani é lembrado, bem como a sua luta em defesa de seu povo e pelo direito de viver em paz em seu território. Sepé foi um líder corajoso, pois enfrentou com denodo as grandes potências guerreiras de seu tempo, Espanha e Portugal, que tinham interesses econômicos e políticos sobre os seus territórios.

Sepé teve ao seu lado milhares de companheiros que se negavam a deixar sua terra. Em razão disso, o herói indígena foi morto no dia 7 de fevereiro de 1756 pelos exércitos espanhóis e portugueses. E no dia 10, em Caiboaté, município de São Gabriel foram massacrados mais de 1.500 índios.

Em cada encontro do Sepé, em São Gabriel, os Guaranis fazem seus rituais a Nhanderu, considerado o deus supremo na mitologia tupi-guarani, pedindo força, luz, caminho e rumo para seguir na luta do dia a dia e elaboram documentos que são enviados às autoridades dos órgãos federais.

Na Sanga da Bica onde foi morto Sepé Tiaraju os Guaranis entoam, a cada ano, seus cantos e ressaltam a importância de estarem unidos, fortalecidos e articulados. Bradam em voz alta: “viva o Sepé, a terra é dom de Tupã, dada aos homens para que seja cuidada, protegida, amada e respeitada”. (Pesquisa: Nilo Dias. Continua na próxima edição. Matéria publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel, edição de 17 de janeiro de 2018)


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