sábado, 3 de fevereiro de 2018

O mito do 
Pau Fincado

Encravada entre São Gabriel, Santa Maria e Cacequi, localidade de nome curioso inspira lendas e controvérsias históricas que perpassam os séculos e algumas das guerras mais sangrentas do Rio Grande do Sul.

A primeira acepção de “pau”, em qualquer dicionário da língua portuguesa, vai ser a de pedaço de madeira, lenho, acha. Umas linhas abaixo, na segunda ou terceira definição, o verbete também trará um significado mais chulo – esse mesmo que você está pensando.

Já a palavra “fincar”, no pai dos burros, remete à ideia de inserir, introduzir, meter com força.

O que seria, portanto, um pau fincado? Um tronco cravado em alguma superfície? Uma cena imprópria para menores? Para os propósitos aqui pretendidos, não será nem uma coisa, nem outra. Fica desde já combinado que Pau Fincado é uma localidade bucólica, com séculos de história, que fica no interior do município de São Gabriel.

E, de fato, há lá um pau. Grosso, rugoso, comprido, uns dizem que de guajuvira, outros aventam tarumã. Ele está mesmo fincado, ereto, em um barranco à beira da BR-158, a meio caminho entre Santa Maria e São Gabriel. Tem cerca de dois metros de altura, sem contar a parte que penetra terra adentro.

Alguns garantem que se trata de um marco com mais de 250 anos, do tempo em que minuanos, charruas, jesuítas, espanhóis e portugueses se engalfinhavam, disputando a posse do que viria a ser o Rio Grande do Sul. Outros sustentam que se trata apenas de um sinalizador de divisa entre municípios. Há versões diferentes sobre quem o colocou ali e o porquê, mas todos concordam num ponto: foi do pau que veio o nome da localidade gabrielense.

Não é história recente. Pelo menos desde a primeira metade do século 19, a zona já era conhecida por esse nome, confirmando que o pau está fincado há muito tempo. O médico Douglas de Morais Garcez, 65 anos, que investiga o tema há cerca de 15 anos e sugeriu esta reportagem, cita concessões de sesmarias lavradas a partir de 1806 que já tomam o Pau Fincado como ponto de referência.

Perto do toco transcorreram episódios da Revolução Farroupilha, mencionados em documentos da época. Em 1842, para dar um exemplo, o general Bento Gonçalves enviou uma carta a José Pinheiro de Ulhoa Cintra, ministro plenipotenciário da jovem República Rio-grandense junto ao governo de Corrientes, para relatar os sucessos recentes da guerra: “O general Canabarro, com o 2º corpo do Exército, ocupa o Pau Fincado e suas imediações, e conserva algumas forças pelo Rosário”, informou.

Naquela época, terras dali pertenciam, aliás, a um ilustre farrapo, o estancieiro Luís Gonçalves das Chagas (1815-1894), mais tarde agraciado por Dom Pedro II com o título de Barão de Candiota. Natural de São Gabriel, Chagas tinha apenas 21 anos quando participou da célebre “Batalha do Seival”, em 1836. Também ficou na história por ter se negado a cumprir ordens do general Antônio de Souza Netto para fuzilar prisioneiros legalistas. Acabou afastado da tropa e foi cuidar da vida.

A partir da década de 1840, amealhou glebas que se espalhavam pelos atuais municípios de São Gabriel, Santa Maria, São Vicente do Sul, Lavras do Sul, Bagé, Pinheiro Machado e Candiota. Conforme o jornalista e escritor Roque Callage (1886-1931), Chagas podia percorrer os quase 200 quilômetros entre Santa Maria e Bagé sem sair das suas terras. Entre elas figurava o Pau Fincado.

No livro Trilogia da Campanha: Ivan Pedro de Martins e o Rio Grande Invisível, de Antônio Hohlfeldt, fala-se mesmo em um certo Barão do Pau Fincado. A dada altura, em um dos apêndices da obra, Hohlfeldt reproduz uma gravação deixada por Martins, um importante escritor gaúcho (era de Minas Gerais), sobre sua imersão na literatura:

“Ainda depois, já escapado das malhas que tentavam a minha prisão no Rio, é na biblioteca de um descendente do Barão do Pau Fincado, Atibaia Azambuja, em São Gabriel, que eu venho a devorar os escritores clássicos gregos traduzidos para o francês”, diz ele. Seria Luís Gonçalves das Chagas? Na página dedicada ao estancieiro gaúcho, a plataforma de genealogia “My Heritage” traz a identificação “Barão de Candiota (Barão do Pau Fincado)”.

GUARDIÃO INFORMAL

Ao que parece, até mesmo Dom Pedro II pode ter contemplado o pau, possivelmente levado por Chagas. Quando a Guerra dos Farrapos acabou, o monarca fez questão de viajar ao Rio Grande do Sul para vistoriar a província pacificada, e hospedou-se em São Gabriel, em janeiro de 1846.

Mas não teria sido dessa vez que viu o pau, só duas décadas depois, em agosto de 1865, quando voltou para acompanhar as manobras militares da Guerra do Paraguai. Envolvido na refrega, Chagas recebeu o imperador e providenciou escolta para ele até Uruguaiana. Mas houve uma festa campeira de permeio.

Conforme o artigo “Representações do Pampa nas Paisagens Rurais e Culturais”, assinado por Nara Rejane Zamberlan dos Santos, Nastaja Cassandra Zamberlan dos Santos e Caroline Ciliane Ceretta, “a Estância da Caieira sediou a capital da República Rio-grandense (1841), bem como recepcionou Dom Pedro II e organizou uma festa campeira, sendo considerada a primeira festa tradicional do Rio Grande do Sul, assim como a do Pau Fincado recepcionou o monarca.

Hoje, essas propriedades não existem mais, sendo considerados mais de 200 anos de sua fundação, dando lugar às plantações de eucaliptos. O Barão de Candiota (Luiz Gonçalves das Chagas) mantinha também as propriedades “Santa Lorena”, “Espinilho” e “Mascarenhas”.

Com todo esse pedigree, é irônico que hoje em dia a “Pau Fincado” não possa ser mencionado sem que risotas zombeteiras brotem nos lábios e piadas de duplo sentido pipoquem uma após a outra.

Também surpreende que, apesar do aparente valor histórico e simbólico, não tenha qualquer placa informativa e fique aos cuidados de um guardião informal. Ele é o trabalhador rural Januário Santos da Silva, 47 anos, que mora bem em fronte à tora e, por isso, dá a ela alguma atenção, ainda que, quando questionado se cuida do pau, solte o indefectível risinho e tire o corpo fora: – Eu não! Cuido nada!

Mas a verdade é que, quando notou haver morcegos vivendo dentro do toco, onde entraram por uma rachadura, Januário expulsou-os com veneno. E, ao perceber que a terra do barranco podia ceder, arriando o pau, bolou um estratagema para mantê-lo em guarda, firme: enfiou um velho pneu até a base, ajudando a fixá-lo no solo. Preocupado, lamenta que a madeira esteja a apodrecer e defende que seja besuntada com algum tipo de produto que a mantenha viçosa.

Com frequência, Januário costuma recepcionar curiosos que aparecem com o objetivo de admirar o tronco célebre: – As pessoas chegam de carro, tiram fotos. Tem uns que param e perguntam: “Onde é que fica o pau?”. Eu digo: “Mas é esse aí”. Acho que esperavam mais.

A única placa nas proximidades foi colocada pela mulher de Januário, mas não ajuda a sinalizar o marco ou a enobrecer sua importância histórica, apenas cria um ambiente cômico e multiplica as piadas.

Com tino comercial, ela espetou no barranco à beira da estrada, bem ao pé do lenho, o letreiro com os dizeres: “Vende-se ovos” – com o probleminha de concordância e tudo. Januário parece se dar conta da estranha combinação pela primeira vez e cai na gargalhada. – Pau com ovos! Ficou engraçado – reconhece.

Apesar de saber da relevância do tronco, e cuidar dele, o morador mais próximo demonstra não ter uma ideia muito clara de como ele foi parar ali:

– Os mais velhos falavam que era um marco, diz que era do tempo antigo, que não podia mexer. Que era do tempo de não sei de quem, durante a guerra. Que botavam um marco para os cavaleiros saberem qual era o caminho que deviam seguir. Também falavam que era para a divisão dos municípios.

TRÍPLICE FRONTEIRA

Diante dessas afirmações pouco esclarecedoras, era prudente procurar um morador de tempos mais remotos, que pudesse conservar relatos ancestrais. A pessoa indicada parecia ser Naldivo dos Santos da Silva, que nasceu no “Pau Fincado” e passou seus 78 anos de vida na localidade.

– Nasci aqui, me criei aqui e nunca saí daqui. Sou dos mais antigos. O que sei é que tem aquele pau ali desde que me conheço por gente – conta Silva, diante de sua casa modesta, em uma propriedade de 10 hectares que ele diz ter obtido através de um processo de “usucampeão”.

Sentado à frente da residência, ele desenha com o dedo, no chão, a geografia da zona e vai explicando que o tronco está no local para marcar a separação entre municípios:

– Aqui é a faixa. Aqui é aquela entrada que vem para a faixa. Aqui o senhor entra. Aqui é o pau, Então aqui é São Gabriel, aqui é Cacequi e aqui é Santa Maria. Esse pau é a divisa dos municípios. São Gabriel, Santa Maria e Cacequi.

Para tirar a dúvida, seria prudente consultar alguém enfronhado na história local, mas o historiador gabrielense de referência, Osório Santana de Figueiredo, morreu em agosto passado, aos 91 anos.

Restou a alternativa de consultar os livros que ele publicou. O mais significativo deles talvez seja “História de São Gabriel”, um cartapácio de meio quilo e mais de 300 páginas. A obra, de fato, traz uma passagem sobre a procedência do marco, mas ela aparece apenas nas páginas finais, em um seção intitulada “Origem de Alguns Passos e Locativos do Município”. É breve e não traz nenhuma indicação de fontes:

“Pau Fincado: Distrito de Tiaraju. Poste de madeira cravado pelos jesuítas e que servia como ponto de referência para o caminho da Colônia do Sacramento. Após encontrá-lo, buscavam o Cerro do Batovi, depois Santa Tecla, até seu destino, e vice-versa. No local ainda existe um pau fincado, em substituição ao primitivo moirão dos missioneiros.”

Como se sabe, nos primórdios da colonização do continente americano, padres jesuítas estabeleceram três dezenas de aldeamentos em regiões ao longo dos rios Uruguai e Paraná, em áreas que hoje fazem parte do noroeste gaúcho, do nordeste da Argentina e do sul do Paraguai.

As missões, contudo, tornaram-se presa de bandeirantes que vinham de São Paulo, o que levou os padres a esconder o gado em zonas mais meridionais, conforme relata o historiador Aristóteles Vaz de Carvalho e Silva no volume “São Gabriel na História”:

“No longínquo ano de 1636, após as incursões dos bandeirantes Antônio Raposo Tavares, André Fernandes e Fernão Dias Paes (o “Caçador de Esmeraldas”), que destruíram sucessivamente as reduções jesuíticas do Guairá, do Tape e de Jesus Maria, resolveram os jesuítas estabelecer estâncias, postos e povos destinados ao pastoreio do gado mais para o interior da campanha, em regiões somente conhecidas de raros peões e dos índios, onde sabiam ser as pastagens e aguadas magníficas para o restabelecimento dos rebanhos missioneiros”.

A chamada “Vacaria dos Padres” estendia-se da margem sul do Rio Jacuí até o Rio da Prata, incluindo o local onde foi fundada a Colônia do Sacramento – o que justificaria a explicação dada por Osório Santana de Figueiredo para a origem jesuítica do Pau Fincado.

Dezenas de milhares de cabeças de gado xucro, o chamado gado chimarrão, pastavam nessa vasta zona, servindo de reserva para as Missões. Conforme Carvalho e Silva, uma das principais vacarias era a de São Miguel, estabelecida em 1637 por dois religiosos e um grupo de índios, que levaram 40 mil bovinos para a região que hoje corresponde ao município de São Gabriel, para mantê-los fora do alcance dos bandeirantes.

O DOSSIÊ DO PAU FINCADO

Mas será que um tronco de dois metros de altura perdido no meio do cone sul seria um bom indicador de rota? Onde estão os indícios para sustentar essa tese? Teriam mesmo os jesuítas sido os responsáveis? O médico Douglas de Morais Garcez, que teve um antepassado entre os agraciados com sesmarias no Pau Fincado, não acredita nessa versão. – Isso é só lenda – afirma.

Douglas e o irmão, o professor universitário Pedro Garcez, ficaram intrigados com as referências à localidade em velhos documentos. Constataram que ainda existia uma zona de São Gabriel que levava aquele nome e verificaram a existência, no local, de um pau fincado.

Ao longo de década e meia de pesquisa, o médico convenceu-se de que o tronco foi colocado, na verdade, por ordem dos monarcas ibéricos, conforme resumiu em e-mail enviado a ZH, segundo o qual o pau “tem um significado histórico muito importante, mas ainda não identificado adequadamente, nem reconhecido, como marco da delimitação de limites entre as coroas portuguesas e espanholas, em lugar descrito no “Tratado de Madri” e no poema épico “O Uraguai”, de Basílio da Gama, e que deveria ser reverenciado antes de tombar literalmente”.

Assinado em 1750, o “Tratado de Madri” redefinia o limite entre as possessões de lusos e castelhanos na América do Sul. No dossiê que montou sobre o assunto, Garcez cita a obra “Jesuítas no Sul do Brasil”, de Aurélio Porto, segundo a qual os trabalhos de demarcação começaram em outubro de 1752.

O médico argumenta que o tratado determinava que certas vertentes de rios deveriam ser usadas como parâmetro, “a saber, por parte dos domínios de Portugal, para a banda da lagoa Mirim; e, pela parte dos domínios da Espanha, para a banda do Rio da Prata”. De acordo com Garcez, essa linha divisória passava pelo atual “Pau Fincado”, e o pau fincado em si é um dos marcos colocados para sinalizá-la.

– A comissão sobe procurando as vertentes dos rios e bota um marco aqui, um marco ali. O “Tratado de Madri” diz que as vertentes que correm para o oeste delimitam o território espanhol, e as águas que correm para leste, no caso os rios Jacuí e Vacacaí, seriam portuguesas.

Então os demarcadores subiram o Rio Santa Maria e, quando estavam chegando perto do Rio Vacacaí, houve a “Guerra Guaranítica”, quando 3 mil índios das Missões tentaram atacar a comissão demarcadora de limites. Depois da guerra, a comissão se dissolveu e não ficou registro desse marco do “Pau Fincado”, que acho que é de 1753.

Quando se dissolveu a comissão, os soldados que faziam parte dela ganharam sesmarias do governo português, e essas sesmarias foram concedidas dando como localização o “Pau Fincado” – diz o médico.

A “Guerra Guaranítica”, portanto, teria atrapalhado o prosseguimento e o devido registro das demarcações. Motivado pelo “Tratado de Madri” e pela consequente expulsão dos jesuítas e dos índios que viviam sob a guarda deles, o conflito teve de fato batalhas decisivas travadas na redondezas do “Pau Fincado”.

O herói Sepé Tiaraju, por exemplo, foi massacrado com cerca de outros 1,5 mil índios na “Batalha de Caiboaté”, travada no atual território gabrielense.

No entanto, em seu livro, o historiador Carvalho e Silva aborda um trabalho demarcatório na zona de São Gabriel realizado quase três décadas depois do período examinado por Garcez. Ele foi motivado pelo “Tratado de Santo Ildefonso” (1777), que estabeleceu uma nova delimitação dos setores português e espanhol.

Segundo o autor, começou então o demorado trabalho de fixação de limites, “e só em 1784 foram colocados o 3º e o 4º marcos castelhanos nas cabeceiras do Rio Cacequi e no Cerro do Caiboaté; e os lusos os afixaram em um braço do Vacacaí e em frente ao citado Cerro, todos eles em território gabrielense”.

Seja como for, a história do pau tem séculos. E não é desprovida de aventuras. Em 2008, o “Diário de Santa Maria” noticiou que o tronco havia sido removido e plantado oito metros adiante, durante a construção de BR-158.

Os moradores não se conformaram e exigiram a recolocação no ponto original – o que teria sido feito. Mesmo que tenha sido enfiado de novo no orifício que os jesuítas ou os demarcadores ibéricos escolheram, já não seria mais o pau de sempre. Quem garante é Naldivo, testemunha de uma grande movimentação para substituir a peça original por uma nova, episódio ocorrido, segundo ele, mais de 20 anos atrás:

– O pau estava muito velho. Não dava mais. Daí veio uma caravana, vieram uns cavalarianos e um caminhão com um pau novo. Tiraram o velho e colocaram o outro, esse que esta aí, disseram que precisava renovar, porque aquilo não podia terminar. O antigo eles levaram, não sei para onde foi. O que eu sei é que aqui é Pau Fincado, desde o princípio do mundo. Ficou o nome. E vai ser assim até o fim da vida, não é? (Fonte: Jornal "Zero Hora", de Porto Alegre, edição de 3 de fevereiro de 2018 - Texto de Itamar Melo)





Um comentário:

  1. Sou de Dom Pedrito,onde temos o Obelisco da Paz, alusão só Tratado da Paz do Ponche Verde, Revolução Farroupilha, que também deve servir de crítica a otários desrespeitosos com a História, que apesar das controvérsias é o resta para ser digno ou não no futuro.
    Morei em São Gabriel e nunca ouvi,por parte de seus moradores e de pessoas de municípios vizinhos, qualquer deboche e insinuações chulas a respeito do local.
    O que se ouve lá é no que Osório Figueiredo escreveu, que soube através de pesquisa até mesmo com descendentes de indígenas que lá vivem.Conhecimento oral,como é comum a esse povo.
    Que hoje o marco esteja se deteriorando é natural, talvez por negligência das autoridades,mas daí a acreditar que rede pau foi trocado uma vez só,desde entre 162...e 06.02.1756,data em que Sepe Tiaraju foi abatido por forças espanholas e portuguesas na Sanga da Bica em São Gabriel, é preciso que o "vivente" seja muito imbecil.

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