quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Gabrielenses prestam homenagem a Chapecoense

A tragédia do dia 29 enlutou não só o povo de Chapecó, mas também o Brasil e o mundo do futebol. O simpático clube catarinense se preparava para o voo mais alto de sua curta história de 43 anos, disputar a final de uma competição internacional da maior importância, como a Copa Sulamericana.
O jornal “O Fato”, por determinação de sua diretora, Ana Rita Focaccia, me passou a tarefa de escrever algo sobre tão triste episódio. Ela, como desportista é herdeira do gosto pelo chamado “esporte das multidões”, visto que seu pai, Dagoberto Focaccia tem uma vida voltada para o futebol, como dirigente e radialista.
Além disso, seu companheiro de vida e de ideais, Márcio Ferreira foi um dos grandes nomes que pisaram o gramado do histórico “Estádio Sílvio de Faria Corrêa”. Por tudo isso ela não poderia, com seu jornal, ficar fora desse momento de extrema dor que vivem todos os que gostam de futebol. 
O Brasil todo já sabe como tudo aconteceu. TVs, rádios e jornais se encarregaram de fazer uma cobertura digna de um acontecimento que acabou com o sonho de um clube e de uma cidade. E quem sabe, de um país. 
O “Fato” ouviu um elenco de pessoas da terra, que prontamente concordaram em externar através de depoimentos, a tristeza e solidariedade com tão lamentável acontecimento.
Poderia ter convidado outras pessoas, a escolha foi feita aleatoriamente, à medida que lembrava nomes envolvidos com o futebol ou com meios de comunicação. E o resultado, creio, atende ao que o jornal esperava.
15310721_10211427800881333_1461786704_nLÚCIO VAZ. Jornalista e escritor, residente em Brasília e torcedor do Grêmio Portoalegrense.
O verde da “Chape”, cor da esperança, me remete para os meus últimos anos em São Gabriel, década de 70. A cidade vivia o sonho da “Associação”. 
Chamávamos assim a Associação São Gabriel de Futebol. A camiseta verde unificava os gabrielenses, antes divididos entre o amarelo do Cruzeiro e o vermelho do Gabrielense. 
O futebol tem esse poder, é capaz de envolver toda uma cidade num projeto comum, principalmente se for uma pequena comunidade do interior. O dicionário explica um pouco mais o significado da palavra “associação”: reunião de pessoas para um fim comum, comunidade, conexão.
Diretores da Chapecoense fundaram o clube para fugir da invasão de Grêmio e Internacional. Queriam ter cara própria, ter as próprias conquistas. Queriam ter um time para chamar de seu. Conseguiram.
Com organização, seriedade e muita, muita paixão, incendiaram a pacata cidade do Oeste catarinense. Primeiro, conquistaram um lugar no competitivo futebol brasileiro. Agora, preparavam-se para conquistar a América.
E se Danilo não tivesse defendido aquela bola no último minuto? Melhor não pensar. Melhor pensar no que aconteceu de bom. Aquele time guerreiro deixou frutos. O maior deles: a cidade descobriu que pode construir um time para enfrentar e derrotar os grandes. Com a ajuda de outros clubes, que já demonstram a sua solidariedade, deve permanecer entre os grandes por muito tempo.
E que a semente plantada pela “Chape” possa florescer na Fronteira Oeste do Rio Grande – mais uma coincidência – nas bandas do Vacacaí. Eles já tem um mascote, o índio Condá. O nosso pode ser o Sepé.
E descubro agora, na chegada dos corpos daquele lendário time, como os moradores de Chapecó chamam o seu clube. Não é “Chapecoense”, não é “Chape”, é “Associação”.
15300483_10211427803001386_992779909_nAUGUSTO SOLANO LOPES COSTA. Jornalista, radialista, advogado e torcedor do S.C. Internacional.
De repente do riso fez-se o pranto. Silencioso e branco como a bruma. E das bocas unidas fez-se a espuma. E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento. Que dos olhos desfez a última chama. ((Vinicius de Moraes – Soneto da Separação)
Nem o talento e a poesia de Vinicius de Moraes são capazes de aplacar este imenso vazio que resulta desta tragédia acontecida com os jogadores, dirigentes, comissão técnica da Chapecoense e com os 21 jornalistas, que foram vítimas do resultado de uma ganância própria do ser humano. 
Recuso-me a falar em acidente, pois foram expostos ao risco de uma mentalidade que pensou primeiro no lucro.
O impacto imediato deste fato não nos permite a dimensão exata dele ao longo do tempo que virá. Ainda entorpecido pela notícia a gente procura explicações. É uma sensação inusitada de ausências de quem não estava no nosso convívio, mas mesmo assim são ausências sentidas. 
Coloca-se no lugar dos que ficaram famílias inteiras atingidas; poderia ser qualquer um de nós. Um time pequeno com uma curta história e de notável crescimento, a “Chape” era um pouco do Brasil que queremos, superando os gigantes e com crescimento organizado, se fazendo notar num cenário complicado, com a sua simplicidade aliada a uma honestidade de propósitos. Era o positivo superando e vencendo num cipoal complicado e de negócios não muito claros.
Um clube simpático a todos e que com a simplicidade vinha se impondo. Era sua primeira final internacional, tudo novidade própria de quem desbrava uma floresta desconhecida, uma cidade inteira envolvida, um resgate do romantismo do futebol de ontem, como que dizendo: é possível! Sua trajetória nos dizia que sim.
Ainda que tenuamente vimos a “Chape” vir a São Gabriel disputar o torneio “Cidade de São Gabriel” em duas ocasiões um time com dirigentes simpáticos tipicamente de interior, com a dignidade e disposição próprias de quem vive uma outra situação no mundo fantástico da bola. Como será agora?
Costumamos olhar o mapa da América do Sul vendo o gigante Brasil de costas para a América e olhando para outros continentes. A “Chape” nos mostra que há uma identidade americana, a solidariedade e acolhida da Colômbia. A postura do adversário Atlético Nacional e sua torcida dão exemplos de humanidade, dizem que existe dignidade no Mundo dito globalizado. Isto ganha dimensões mundiais e algum acréscimo em todos no sentimento de humanidade.
Choramos todos, que as lágrimas que escorrem reguem novos sentimentos humanos. Que do pranto se faça o riso, ainda que saudoso E que o Brasil seja realmente Sul-Americano e irmanado aos demais.
15282076_10211427808681528_632782491_nBERALDO LOPES FIGUEIREDO, professor, articulista, desenhista, desportista e torcedor do Grêmio Portoalegrense.
Poxa pecou, qual pecado para merecer tamanha tragédia, no qual ceifou vidas, engoliu sonhos e jogou tudo numa força medonha, numa montanha mortal, que morte terrível, tão terrível que penetrou no coração do mundo, torceu, apertou espremeu tanto que rios de lágrimas tomaram conta de gente que se tornou mais gente, que lição foi essa, que o destino frio implacável invadiu as casas das pessoas trazendo uma dor descontrolada, amargurada.
Poxa pecou, qual foi o pecado, porque primeiro ela conquistou com sua simplicidade, competência, sua humildade, para depois se iludir num sonho tão lindo e morreu na escuridão, na chuva e foi jogada no calombo da Colômbia, no frio, no escuro, na sombria mata testemunhas de gritos, gemidos, dor, sangue, morte, morte real morte de sonhos.
Meu Deus, ainda precisamos da DOR para sabermos que somos todos iguais, ainda precisamos do insólito para despertar um amor que nos faz chorar por almas desconhecidas. Oh! Santa Catarina onde tu estavas, teus filhos se foram ou tinha que ser assim, para que o mundo ainda despertasse , para que homens e mulheres com olhos marejados, coração apertado, de repente se tornaram também SANTOS HUMANOS, ao chorar pela dor alheia.
Adeus time da Chapecoense, os espíritos daqueles corpos, pegaram outro avião, um avião diferente, que atravessa dimensões, irão jogar noutro torneio, numa primeira divisão de outro mundo, com certeza serão campeões, porque aqui eles tem uma torcida maior, ela ocupa mil estádios, são milhões que dizem: SOU CHAPECOENSE.
15300724_10211427806201466_1952735873_nMARCEL DA COHAB, advogado, carnavalesco, desportista e torcedor do Internacional.
Uma tragédia dessas repercute e até certo ponto, ela torna nosso dia nebuloso, meio pesado quando vemos na mídia. Não é pela fama das pessoas, mas por você acompanhá-las, quase que diariamente na sua distração de ver televisão. 
Denner, Tiego e Biteco do Grêmio. Polmann do Juventude. Kempes de vários times do interior do Rio Grande do Sul. Alan Ruschel e Josimar do Internacional. Anderson Paixão do Inter. Caio Júnior jogou na dupla e treinou o Grêmio, além de outras equipes grandes do Brasil.
Vitorino Chermont, da Globo, Sportv e agora Fox. Mário Sérgio jogou muito na dupla e treinou o Inter. Gostava de seus comentários. Há poucos dias tinha dito aqui que o preferia para treinar o Inter.
São pessoas que a gente vê no futebol, torce por eles, contra eles, etc. Ananias fez o primeiro gol da Arena Palmeiras. Cléber Santana, jogador técnico de meio campo. Bruno Rangel, goleador. Jogadores que se encaixariam bem em outras grandes equipes. Mas acima de tudo, pessoas, pais de família, maridos, filhos…
Há uma semana falei do exemplo de gestão da Chapecoense. Não torcia para eles, até pelos últimos “laçaços” que deram no meu time. Mas não torcer não é querer o mal. É até uma forma de respeito.
Ouvi o Paulo Paixão falar na Gaúcha na manhã do acidente, posteriormente ao fato. Ele já perdeu o segundo filho e o pior, aniversário do seu neto, filho do filho. Isso me choca, pois além de tudo conheci o Paulo Paixão aqui em São Gabriel. Típico carioca boa praça, sambista, bom de papo, falamos um tempão sobre carnaval e é o tipo de cara com quem se conversa dez minutos e parece que é amigo há anos.
E mesmo que não o fosse, ele perdeu o segundo filho de forma prematura no dia do aniversário do neto e foi para a rádio falar em vontade de Deus, em agradecer pelos filhos que teve, em aproveitar a vida e os bons valores.
Uma tragédia por si só já nos toca. Pode ser com desconhecidos, com quem você nunca viu. Mas neste caso, sentimos como se fosse com gente próxima da gente, pois eram atletas, profissionais, jornalistas, pessoas que acompanhamos diariamente nos jornais, televisão e internet. Muito triste tudo isso.
Mas como tudo na vida fica uma lição. Lição de sermos sempre boas pessoas, de amarmos ao próximo, de nunca deixarmos as coisas para amanhã e o que fica como legado é nossa conduta, nosso caráter, nossa história de vida.
A “Chape” vai precisar de uns três ou quatro anos, no mínimo, para se reerguer. E só a comunidade de lá poderá ser o alicerce disso. Não adianta ajuda externa apenas. Se o povo souber a força que tem e transformar todo o seu sentimento em superação, obviamente que este fato jamais será esquecido, mas poderá recolocar o clube onde ele se encontrava até então.
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JOSÉ BINA, narrador de futebol e torcedor do S.C. Internacional, de Porto Alegre. 
Texto publicado em sua página no Facebook e devidamente autorizada sua repetição aqui.
Cerca de 30 anos atrás, período de ouro das principais rádios de nossa cidade, São Gabriel e Batoví, na área do Esporte, já trabalhando como repórter esportivo e tendo ao lado, uma grande equipe formada por excelentes narradores, onde destaco Luiz Alberto Vargas, Glauco Vezzani, Odilon Ramos e ultimamente, Jorge Baltar, fazíamos coberturas de jogos importantes como Copa do Brasil, Libertadores, Seleção Brasileira e Campeonato Gaúcho.
Numa dessas andanças pelos gramados, tive a oportunidade de entrevistar Mário Sérgio, na época jogador do Internacional, e Victorino Chermont, da Bandeirante e que hoje se encontrava na Fox.
Mário Sérgio e Victorino morreram no acidente de avião onde estava também a delegação da Chapecoense. Guardo, com muito carinho, aquele momento. Uma pena!
15281872_10211427811641602_1372959435_nJOÃO ALFREDO REVERBEL BENTO PEREIRA – Advogado, colunista do “Jornal da Cidade”, desportista e torcedor do Grêmio Portoalegrense.
O Nilo Dias, meu amigo, pediu uma manifestação sobre a tragédia que vitimou o time inteiro da Chapecoense e vários integrantes da imprensa escrita e falada de nosso país. A missão não é entusiasmante, mas vamos lá.
Desde logo, avultam dois fatos significativos que se contrapõem e, lamentavelmente, se completam. Em primeiro, a mistura de ganância, imprevidência e irresponsabilidade. Em segundo, a solidariedade das pessoas, mostrando e demonstrando que vivemos num único mundo. É prematuro afirmar qualquer coisa, a não ser conjecturar.
A autonomia de voo da aeronave era de 3.000 quilômetros, praticamente a mesma entre a decolagem e o aeroporto de destino. Onde a reserva técnica de combustível? Nessa época, na Colômbia, chove bastante e os temporais são frequentes.
A existência de emergência, num voo comercial de outra empresa, fez com que a aeronave sobrevoasse a pista e desse uma larga volta para, aí sim, poder aterrisar. A fadiga da tripulação e por aí vai. Já se disse que as tragédias aéreas nunca ocorrem por um único motivo, mas por situações adversas concorrentes e que se somam.
E aconteceu o pior. Por outro lado, é emocionante ver a solidariedade de todo o mundo, literalmente, envolvendo clubes de futebol, entidades as mais diversas, governos e população em geral. Toda essa onda de solidariedade apenas comprova que nem tudo está perdido e que ainda há salvação.
De lamentar, apenas, a morte de tanta gente para demonstrar isso. Na verdade, numa ocasião dessas, somos um só. Por isso, ainda acredito no porvir. Não tenho palavras para consolar ninguém, até porque, tudo o que se disser, não pode apagar uma dor dessa magnitude. Lamento profundamente.
15328303_10211427816201716_1334207511_nLUCIANA CARVALHO. Jornalista e professora adjunta na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) , Campus de Frederico Westphalen, onde reside atualmente. 
Um dos maiores mitos acerca da profissão de jornalista diz respeito à crença de que quem trabalha com notícia deve ser um observador/narrador neutro, imparcial. 
Nas faculdades de Jornalismo, nos primeiros semestres, aprendemos que uma boa notícia se faz com o lide (o primeiro parágrafo que responde às perguntas “quem? o quê? onde? como? quando? e por quê?”) e a técnica da pirâmide invertida (pela qual os fatos são relatados do mais para o menos importante).
Mesmo após passarmos pelas disciplinas mais teóricas, as quais nos mostram – por meio das ciências da linguagem e da filosofia – que não existe neutralidade, continuamos acreditando que nosso papel é construir relatos isentos de qualquer paixão. Mas, não somos apenas nós, jornalistas, os culpados pela reprodução do mito da objetividade.
A sociedade, quando percebe que as notícias são parciais (apenas parte da realidade, mesmo quando construídas com profissionalismo e seriedade), nos cobra que sejamos isentos. Embora possamos diferenciar, com argumentos bem sustentados, as diferenças entre isenção, neutralidade, imparcialidade e objetividade, no fundo todas essas condições são mera utopia.
Podemos e devemos ser honestos, plurais, inclusivos e justos na produção das notícias, mas nunca alcançaremos o real em sua complexidade, pois ele só nos é alcançável por meio da linguagem, caracterizada por sua incompletude.
Um dos elementos desse mito da objetividade é o controle da emoção. Faz parte do imaginário coletivo ao redor do modelo hegemônico do jornalismo informativo a ideia que o jornalista deve controlar suas paixões, impressões, ideologias e sentimentos. É esse ideário que sustenta a maior parte das críticas ao sensacionalismo da mídia.
Ao mesmo tempo em que apontam o dedo contra os repórteres que apelam em excesso para a emoção, muitos desses críticos são os mesmos a compartilhar imagens de crianças doentes e animais mutilados em suas redes sociais na internet.
Não se trata aqui de defender a exploração da dor alheia, postura que deve sempre ser rechaçada, mas de refletir sobre o que diferencia os jornalistas dos demais quando estamos diante de uma tragédia.
O acidente com o avião que dizimou mais de 70 vidas humanas, na última semana, trouxe à tona situações muito semelhantes às vivenciadas em 2013, quando da tragédia da Boate Kiss. Jornalistas, familiares, amigos, todos ficamos mais uma vez diante da nossa pequenez humana. É a morte e sua capacidade de unir.
Nessas horas, onde fica a tal objetividade na cobertura da imprensa? Como cobrar frieza de jornalistas? Uma mãe que perdeu o filho se compadece, diante das câmeras, com a dor de um repórter que perdeu amigos na tragédia, e nos faz lembrar que jornalista também chora.
A cobertura da tragédia com o Chapecoense teve de tudo: informações mal ou bem apuradas, repórter abordando familiares com perguntas clichê, jornalista gravando funeral com celular e sem qualquer bom senso, homenagens emocionantes, imagens desnecessárias do local da queda da aeronave, site usando a tragédia para atrair cliques e perdendo likes em massa como forma de protesto.
Com meus quase 20 anos de profissão, tive a sorte de nunca realizar uma cobertura tão dolorosa como essas que meus colegas hoje realizam, mas também cometi alguns erros. É preciso, sim, criticar a mídia, para melhorá-la. Antes de tudo, no entanto, devemos ter em mente que jornalista é uma pessoa como outra qualquer. Trabalha sob pressão, sofre, chora, acerta e erra.
Diante da dor de tanta gente em momentos de catástrofes e acidentes, não tem manual de jornalismo que dê conta. Só nossa humanidade é capaz de nos levar a uma cobertura na medida certa, que informe, emocione, mas não explore a dor alheia.
15328384_10211427826561975_596693408_nHELENICE TRINDADE DE OLIVEIRA. Advogada, radialista, contista e torcedora do Internacional. 
A tragédia e a injustiça do futebol nos anos 60 
In memoriam de Ilo Nunes de Oliveira
Por intensa militância no futebol meu pai ocupou uma posição muito especial na pequena cidade onde vivia. Ocupava os seus dias no empenho consciente e convicto de que o esporte favorecia uma vida mais saudável com companheirismo na disputa generosa entre os jogadores.
Para os jogadores os times eram suas famílias e a integração social que ele produzia era o deslanche que muitos jovens periféricos precisavam. Pequenas mudanças ocorriam na vida daqueles atletas interioranos e o pagamento que recebiam invariavelmente vinha da prefeitura local ou dos engenhos de arroz que empregavam quase todos. Alguns mecenas futebolistas se encarregavam de premiar o jogador artilheiro.
Nunca soube explicar as razões que muitas vezes fui ao estádio de futebol nos dias que meu pai treinava seu time, sei dizer que seus ensinamentos eram baseados em histórias reais e práticas. Os jogadores sabiam que alguma espécie de rito deveria se dar depois daqueles jogos, submetidos a ilusão juvenil que um dia seriam Garrincha ou Pelé pela capacidade técnica.
Pelo menos ali, no campo que jogavam diluíam as dificuldades de localizar seus destinos, pois a vida bruta já oferecia a grande maioria responsabilidades com a família. Laterais e meio-campistas, atacantes ou zagueiros sonhavam jogar no Santos, Internacional ou no Grêmio. Quando despertavam a paisagem era sempre a mesma.
As ideias e os afetos se embaralhavam e muitos não souberam partir. Pelos caminhos foram se resignando na aprendizagem de que a estrada que se abria aos seus olhos era a única disponível desde o dia que nasceram e se arrastavam entre as cinzas dos sonhos não realizados.
A minha infância foi povoada por nomes que nos domingos espichados e tediosos eu ouvia na rádio ditos pelo meu pai, como comentarista esportivo ou como treinador explicando a derrota ou vitória. Ele tinha o direito a solidariedade. Fui decorando nomes e fisionomias.
O Muquica, Boneval, Castelhano, Sapinho, Canjica, etc … O Canjica foi o que mais depositei na memória, seu sorriso, sua negritude e do tamanho do seu desaparecimento como jogador, o alcoolismo que ocupou os seus dias matou a sua estrada.
A morte anunciada de um jogador de futebol pelo uso do álcool acontecia pela ausência de regras formais sobre o consumo, a evidente depressão e cansaço de uma brutal ressaca antes das partidas. Concentrar antes dos jogos nem sempre era possível, meu pai organizava o sono dos jogadores para que nenhuma amnésia alcoólica atrapalhasse a partida do dia seguinte.
Ele repetia com convicção que assim a vitória seria possível. Contudo a tragédia já se instalara desaparecendo para muitos a possibilidade entre o ruim e o perdoável.
Uma coisa era certa os jogadores adoeciam pelo uso do álcool, deprimiam pela falta de capacidade física e pela alimentação deficiente como se comprova nos dias atuais.
Recomeçavam a contagem e as contratações a cada campeonato e o silêncio se instalava sobre as perdas, resvala para os não contratados e sobre a miséria de entrar num copo e afogar tristezas. Sem tratamento adequado alguns pareciam não esperar por nada.
A dor do confronto social, da arrogância da classe dominante da época e a inexistência de amparo para aquele sofrimento compartilhado somente por algumas famílias se misturava na mais decidida ignorância.
O abismo da hora, o esgotamento do sonho da fama destruído foi o mais difícil e decisivo itinerário que alguns jogadores treinados pelo meu pai viveram. A injustiça, a dor e as crenças culturais escondidas nos atalhos silenciosos das vidas daqueles homens que andaram na estrada para serem vistos e nunca conseguiram foram trágicas.
Depois desses anos todos, quando tomei conhecimento da queda do avião do time do Chapecoense com mortos e sobreviventes, imaginei estar no estádio com meu pai.
A medida que eu espreito as notícias da tragédia e as comparo com vidas que conheci, vou refazendo as conclusões, para finalmente entender que o inesperado se confrontou com os argumentos da morte fechando uma estrada que só permitiu a passagem de alguns, para os sobreviventes o universo atapetou um outro caminho como fez com alguns jogadores que foram treinados pelo pai que sobreviveram a depressão, o alcoolismo e a pobreza.

“Mens Sana in Corpore Sano”, beijo papai!
(Por Nilo Dias - Matéria publicada no jornal "O Fato", de São Gabriel-RS, edição de 10 de dezembro de 2016)

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